terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Porque hoje é o dia 8 de Dezembro dia da Imaculada Conceição e de todas as Mães

É todo um mundo confuso de penetração difícil, tanto mais difícil quanto mais pretendo pô-lo claro, transparente. Não sei se houve primeiro lágrimas ou o som do harmónio. Em todo o caso lembro-me de duas casa - uma na Eira, outra no Adro. Sei que as lágrimas e as estrelas eram na casa da Eira e a música do harmónio na casa do Adro.
Minha mãe disse-me que nasci na casa do Adro, e só um pouco mais tarde, quando a família a abandonou de todo, nos mudámos para a casa da Eira. Ambas eram casas pequenas, térreas, com duas divisões, mais que suficientes para mãe e filho viverem. Ainda há poucos anos vi essas casitas onde eu e a minha mãe começámos a ser um do outro, e pareceram-me incrivelmente pequenas, mais pequenas que certas salas de brinquedos que os meninos ricos têm na cidade.
Em frente da porta de entrada havia uma arca enorme. Sei que nessas arcas arrumam os pobres tudo o que têm: a roupa do corpo, a roupa da cama, o milho para moer, o pão e faca embrulhados num pano linho grosseiro. Lembro-me do cheiro que sai da arca ao abrir - é um cheiro forte, são, de frutos naturais que a terra dá.
Ora um dia, quando me aproximei da arca - sabe-se lá para dar a entender a minha mãe que queria pão - estava lá em cima uma coisa que nunca tinha visto. Em bicos de pé, deitei-lhe a mão e puxei. Então o que aconteceu foi maravilhoso: de dentro saíu um som bonito, mais bonito ainda do que a voz de minha mãe, que certamente eu já ouvira cantar. E talvez não, talvez eu não tivesse ouvido ainda minha mãe a cantar. Minha mãe era nesse tempo uma mulher triste.
Da casa da Eira só me lembro do quartito que se seguia à cozinha. Um tabique separava-nos da casa da Ti Ana, uma velhota a quem a minha mãe às vezes me deixava a guardar. Foi nesse quarto que a minha mãe me ensinou a rezar:Senhora Sant`Ana,tapai-me cum véu,que sou pequenino,levai-me prò céu.
Mas eu gostava mais de me meter com a velhota do que das orações:- Ó Ti Ana! Ti Ana!Faça-me um favor!- Que é? - perguntava a boa mulher, fingindo ignorar a resposta:- Empreste-me a sua pele para fazer um tambor!Mas isso foi bastante depois. Antes das orações e das brincadeiras com a Ti Ana, lembro-me das lágrimas. Nunca mais voltei a chorar assim..
Certa manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. - Ó mãe, mãe... -Mas a mãe não vinha. Não havia mãe. Havia só porta fechada, - Ó mãe, mãe... - E a casa deserta. Pelas frinchas largas da porta via a manhã lá fora. Era uma manhã de sol quente talvez de Julho, talvez de Agosto. Devia haver medas de palha na eira em frente. Mas os meus olhos mal viam, estavam rasos de água e de angústia. - Ó mãe, mãe... - E de repente, na manhã clara, começaram a cair estrelas pequeninas, estrelas verdes, vermelhas, estrelas de oiro. As lágrimas caíam-me pela cara. - Ó mãe, mãe... - O nariz esmagado contra a porta, os olhos muito abertos, vendo através da frinchas as estrelas caindo, umas atrás das outras. - Ó mãe, mãe...
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E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem mesmo tu, mãe, que a essas horas andavas a ganhar o pão para a boca daquele que hoje te oferece estes versos."

Eugénio de Andrade


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